sexta-feira, 31 de outubro de 2008

João Boa-Morte

Vou contar para vocês
um caso que sucedeu
na Paraíba do Norte
com um homem que chamava
Pedro João Boa-Morte
lavrador da Chapadinha:
talvez tenha boa morte
porque vida ele não tinha.

Sucedeu na Paraíba
mas é uma historia banal
em todo aquele Nordeste.
Podia ser no Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão,
que todo cabra-da-peste
ali se chama João
Boa-Morte, vida não.

Morava João nas terras
de um coronel muito rico,
tinha mulher e seis filhos,
um cão que chamava “Chico”,
um facão de cortar mato,
um chapéu e um tico-tico.

Trabalhava noite e dia
nas terras do fazendeiro,
mal dormia, mal comia,
mal recebia dinheiro;
se não recebia não dava
para acender o candeeiro.
João não sabia como
fugir desse cativeiro.

Olhava pra’s crianças
de olhos cavados de fome,
já consumindo a infância
na dura faina da roça.
Sentia um nó na garganta.
Quando uma delas almoçava
as outras não, a que janta
no outro dia não almoça.

Olhava para Maria,
sua mulher, que a tristeza
na luta de todo o dia
tão depressa envelheceu.
Perdera toda a alegria
perdera toda a beleza
e era tão bela no dia
que João a conheceu.

Que diabo tem nesta terra,
neste Nordeste maldito,
que mata como uma guerra
tudo que é bom e bonito?
Assim João perguntava
para si mesmo e lembrava
que a tal guerra não matava
o coronel Benedito!

Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor
não mata quem é dono de engenho,
só mata cabra-da-peste
só mata o trabalhador.
O dono do engenho engorda,
vira logo senador.

Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do coronel Benedito
tiveram com ele um atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era tão baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.

João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
“Não vamos voltar atrás.
Prescisamos de dinheiro,
se o coronel não dá mais
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro”.

Com o coronel foram ter
mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
“Ainda está para nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço.”
O pessoal se assustou.
Sabiam que o fazendeiro
não brinca com lavrador.
Se quem obedece morre
de fome e desespero,
quem não obedece corre
ou vira “cabra morredor.”

Só um deles se atreveu
a vender seu cereal.
Noutra fazenda vendeu
mas vendeu e se deu mal.
Dormiu mas não amanheceu.
Foram encontrá-lo enforcado
de manhã num pé de pau.
Debaixo do morto estava
um cabra do Benedito
que dizia a quem passava:

“Esse moleque maldito
pensou que desrespeitava
o que o patrão tinha dito.
Toda planta que aqui nasce
é planta do coronel,
ele manda nesta terra
como Deus manda no céu.
Quem estiver descontente
acho melhor não falar
ou fale e depois se agüente
que eu mesmo venho enforcar.”

João ficou revoltado
com aquele crime sem nome.
Maria disse: “Cuidado,
não te mete com esse homem.”
João respondeu zangado:
“Antes morrer enforcado
do que sucumbir de fome.”

Nisso pensando, João
falou com seus companheiros:
“Lavradores, meus irmãos,
esta nossa escravidão
tem que ter um paradeiro.
Não temos terra, nem pão,
vivemos em um cativeiro.
Livremos nosso sertão
do jugo do fazendeiro.”

O coronel Beneditino
quando soube que João
tais coisas havia dito
ficou bravo como o cão.
Armou dois “cabras” e disse:
- “João Boa-Morte não presta,
não quero na minhas terras
caboclo metido a besta.”

“Vou Lhe dar uma lição.
Ele quer terra, não é?
Pois vai ganhar o sertão.
Vai ter de andar a pé
desde aqui ao Maranhão.
Quando virar vagabundo
vai ter de baixara a crista.
Vou avisar todo mundo
que esse cabra é comunista.
Quem mexe com o Benedito
bem caro tem de pagar.
Ninguém lhe dará um palmo
de terra pra trabalhar.”

Se assim disse, assim fez.
João foi mandado embora
de seu casebre pacato.
Disse a Maria: “ – Não Chora,
todo patrão é ingrato.”
E saíram mundo afora,
ele, Maria, os seis filhos
e o facão de cortar mato.

Andaram o resto do dia
e quando a noite caía
chegaram numa fazenda:
“- Seu doutor, tenho família,
sou homem trabalhador.
Me ceda um palmo de terra
pra eu trabalhar pro senhor.”

Ao que o doutor respondeu:
“Terra aqui tenho sobrando,
todo este baixão é meu.
Se planta e colhe num dia,
pode ficar trabalhando.”
“- Seu coronel, me desculpe,
mas eu não sei fazer isso.
Quem planta e colhe num dia,
não planta, faz feitiço.”
“- Neste caso, não discuta,
acho melhor ir andando.”

E lá se foi Boa-Morte
com a mulher e os seis meninos.
Talvez eu tenha mais sorte
na fazenda dos Quintinos.”
Andaram rumo do Norte,
para além da Várzea dos Sinos:
“- Coronel, morro de fome
com seis filhos e a mulher.
Me dê trabalho, sou homem
para o que der e vier.”

E o coronel respondeu:
“- Trabalho tenho de sobra.
E se é homem como diz
quero que me faça agora
esta raiz virar cobra
e depois virar raiz.
Se isso não faz, vá-se embora.”

João saiu com a família
num desespero sem nome.
Ele, os filhos e Maria
estavam mortos de fome.
Que destino tomaria?
Onde iria trabalhar?
E à sua volta ele via
terra e mais terra vazia,
milho e cana a verdejar.

O sol do sertão ardia
sobre os oito a caminhar.
Sem esperança de um dia
ter um canto pra ficar,
à sua volta ele via
terra e mais terra vazia
milho e cana a verdejar.

E assim, dia após dia,
andaram os oito a vagar,
com uma fome que doía
fazendo os filhos chorar,
mas o que mais lhe doía
era, com fome e sem lar,
ver tanta terra vazia
tanta cana a verdejar.

Era ver terra e ver gente
daquele mesmo lugar,
amigos, quase parentes,
que não podiam ajudar,
que se lhe dessem pousada
caro tinha que pagar.
O que o coronel ordena
é bom não contrariar.

A muitas fazendas foram,
sempre o mesmo resultado.
Mundico, o filho mais moço,
parecia condenado.
Pra respirar era um esforço,
só andava carregado.
“- Mundico, tu ta me ouvindo?”
Mundico estava calado.

Mundico estava morrendo,
coração quase parado.
Deitaram o pobre no chão,
no chão com todo cuidado.
Deitaram e ficaram vendo
morrer o pobre coitado.

“- Meu filho”, gritou João,
se abraçando com o menino.
Mas de Mundico restava
somente o corpo franzino.
Corpo que não precisava
nem de pai nem de pão,
que precisava de chão
que dele não precisava.

Enquanto isso ali perto
detrás de uma ribanceira,
três cabras com tiro certo
matavam Pedro Teixeira,
homem de dedicação
que lutara a vida inteira
contra aquela exploração.
Pedro Teixeira lutara
ao lado de Julião
falando aos caboclos para
dar melhor compreensão
e uma Liga organizara
pra lutar contra o patrão,
pra acabar com o cativeiro
que exista na região,
que conduz ao desespero
toda uma população
onde só o fazendeiro
tem dinheiro e opinião.

Essa não foi a primeira
morte de encomenda
contra um líder camponês.
Outros foram assassinados
pelos donos da fazenda.
Mas cada Pedro Teixeira
que morre, logo aparece
mais um, mais quatro, mais seis
- que a luta não esmorece
agora que o camponês,
cansado de fazer prece
e de votar em burguês,
se ergue contra a pobreza
e outra voz já não escuta,
só a voz que chama pra luta
- voz da Liga Camponesa.

Mas João nada sabia
no desespero em que estava,
andando aquele caminho
onde ninguém o queria.
João Boa-Morte pensava
que se encontrava sozinho
e que sozinho morreria.

Sozinho com cinco filhos
e sua pobre Maria
em cujos olhos o brilho
da morte se refletia.
Já não havia esperança,
iam sucumbir de fome
ele, Maria e as crianças.
Naquela terra querida,
que era sua e não era,
onde sonhara com a vida
mas nunca viver pudera,
ia morrer sem comida
aquele de cuja lida
tanta comida nascera.

Aquele de cuja mão
tanta semente brotara,
que filho daquele chão,
aquele chão fecundara;
e assim se fizera homem
para agora, como um cão,
morrer, com os filhos, de fome.

E assim foi que Boa-Morte
quando chegou a Sapé,
desiludido da sorte,
certo que ia morrer,
decidiu que aquele dia
antes da aurora nascer
os cinco filhos mataria
e mataria a mulher
depois se suicidaria
para acabar de sofrer.

Tomada essa decisão
sentiu que uma paz sofrida
brotava em seu coração.
Era uma planta perdida,
uma flor de maldição
nascendo de sua mão
que sempre plantara a vida.

Seus olhos se encheram d’água.
Nada podia fazer.
Pra quem vive na mágoa,
mágoa menor é morrer.
Que sentido tem a vida
pra quem não pode viver?
Pra quem plantando e colhendo
não tem direito a comer?
Pra que ter filhos, se os filhos
na miséria vão morrer?
É preferível matá-los
aqueles que os fez nascer.

Chegando a um lugar deserto
pararam para dormir.
Deitaram todos no chão
sem nada para se cobrir.
Quando dormiam João
levantou-se devagar
pegando logo o facão
com que os ia degolar.

João se julgava sozinho
perdido na escuridão
sem ter ninguém para ajudá-lo
naquela situação.
Sem amigo e sem carinho
amolava o seu facão
pra matar a família
e varar seu coração.

Mas como um louco atrás dele
andava Chico Vaqueiro,
um lavrador como ele
como ele sem dinheiro
para levá-lo para a Liga
e lhe dar um paradeiro
para que assim ele siga
o caminho verdadeiro.
Pra dizer-lhe que a luta
só agora vai começar,
que ele não estava sozinho
não devia se matar.
Devia se unir aos outros
para com os outros lutar.
Em vez de matar os filhos
devia era os libertar
do jugo do fazendeiro
que já começa a findar.

E antes que Boa-Morte,
levado pela aflição,
em seis peitos diferentes
varasse o seu coração,
Chico Vaqueiro chegou:
“- Compadre, não faça isso
não mate quem é inocente.
O inimigo da gente
- lhe disse Chico Vaqueiro –
não são os nossos parentes,
o inimigo da gente
é o coronel fazendeiro.

O inimigo da gente
é o latifundiário
que submete a nós todos
a esse cruel calvário.
Pense um pouco meu amigo
não vá seus filhos matar.
É contra aquele inimigo
que nós devemos lutar.
Que culpa tem seus filhos?
Culpa de tanto penar?
- Vamos mudar o sertão
pra vida deles mudar.”
Enquanto Chico falava
no rosto magro de João
uma nova luz chegava.
E já a aurora, do chão,
de Sapé, se levantava.


E assim se acaba uma parte
da história de João.
A outra parte da história
vai tendo continuação
não neste palco de rua,
mas no palco do sertão.
os personagens são muitos
e muita a sua aflição.
Já vão compreendendo
como compreendeu João,
que o camponês vencerá
pela força da união.
Que é entrando para as Ligas
que lê derrota o patrão,
que o caminho da vitória
está na Revolução!

Ferreira Gullar

Em Sua Morte.

Camarada Stalin, eu estava junto ao mar na Ilha Negra,
descansando de lutas e de viagens,
quando a notícia de tua morte chegou como um choque de oceano.

Foi primeiro o silêncio, o esturpor das coisas, e depois chegou do mar uma onda grande
de algas, metais e homens, pedras, espuma e lágrimas estava feita esta onda.
de história, espaço e tempo recolheu sua matéira
e se elevou chorando sobre o mundo
até que diante de mim veio para golpear a costa
e derrubou em minhas portas sua mensagem de luto
com um grito gigante
como se de repente se quebrasse a terra.

Era em 1914.
Nas fábricas se acumulavam sujeiras e dores.
Os ricos do novo século
repartiam-se a dentadas o petróleo e as ilhas, o cobre e os canais.
Nem uma só bandeira levantou suas cores
sem os respingos do sangue.
De Hong Kong a Chicago a polícia
buscava documentos e ensaiava a metralhadoras na carne do povo.
As marchas militares desde a aurora
mandavam soldadinhos para morrer.
Frenético era o baile dos estrangeiros
nas boates de Paris cheias de fumo.
Sangrava o homem.
Uma chuva de sangue
caía do planeta,
manchava as estrelas.
A morte estreou então armaduras de aço.
A fome
Nos caminhos da Europa
foi como um vento gelado aventando folhas secas e quebrantando ossos.
O outono soprava os farrapos.
A guerra havia eriçado os caminhos.
Olor de inverno e sangue
emanava da Europa
como de um matadouro abandonado.
Enquanto isso os donos
do carvão,
do ferro,
do aço,
do fumo,
dos bancos,
do gás,
do ouro,
da farinha,
do salitre,
do jornal El Mercúrio,
os donos de bordéis,
os senadores norte-americanos,
os flibusteiros
carregados de ouro e sangue
de todos os países,
eram também os donos
da História.
Ali estavam sentados
de fraque, ocupadíssimos
em dispensar-se condecorações,
em presentear-se cheques na entrada
e roubá-los na saída,
em presentear-se ações da carnificina
e repartir-se a dentadas
pedaços de povo e de geografia.

Então com modesto
vestido e gorro operário,
entrou o vento,
entrou o vento do povo.
Era Lênin.
Mudou a terra, o homem, a vida.
O ar livre revolucionário
transtornou os papéis
manchados. Nasceu uma pátria
que não deixou de crescer.
É grande como um mundo, mas cabe
até no coração do mais
humilde
trabalhador de usina e oficina,
de agricultura ou barco.
Era a União Soviética.

Junto a Lênin
Stalin avançava
e assim, com blusa branca,
com gorro cinzento de operário,
Stalin,
com seu passo tranqüilo,
entrou na História acompanhado
de Lênin e do vento.
Stalin desde então
foi construindo. Tudo
fazia falta. Lênin
recebeu dos czares
teias de aranha e farrapos.
Lênin deixou uma herança
de pátria livre e vasta.
Stalin a povoou
com escolas e farinha,
imprensas e maçãs.
Stalin desde o Volga
até a neve
do norte inacessível
pôs sua mão e em sua mão um homem
começou a construir.
As cidades nasceram.
Os desertos cantaram
pela primeira vez com a voz da água.
Os minerais
acudiram,
saíram
de seus sonhos escuros,
levantaram-se,
tornaram-se trilhos, rodas,
locomotivas, fios
que levaram as silabas elétricas
por toda extensão e distância.
Stalin
construía.
Nasceram de suas mãos
cereais,
tratores,
ensinamentos,
caminhos,
e ele ali
simples como tu e como eu,
se tu e eu conseguíssemos
ser simples como ele.
Porém aprenderemos.
Sua simplicidade e sua sabedoria,
sua estrutura
de bondoso coração e de aço inflexível
nos ajuda a ser homens cada dia,
diariamente nos ajuda a ser homens.

Ser homens! É esta
a lei Staliniana!
Ser comunista é difícil.
Há que aprender a sê-lo.
Ser homens comunistas,
é ainda mais difícil,
e há que aprender de Stalin
sua intensidade serena,
sua claridade concreta,
seu desprezo
ao ouropel vazio,
à oca abstração editorial.
Ele foi diretamente
desenlaçando o nó
e mostrando a reta
claridade da linha,
entrando nos problemas
sem as frases que ocultando
o vazio,
direto ao centro débil
que em nossa luta retificaremos
podando as folhagens
e mostrando o desígnio dos frutos.
Stalin é o meio-dia,
A madureza dos homens e dos povos.
Na guerra o viram
as cidades queimadas
extrair do escombro
a esperança,
refundida de novo,
fazê-la aço,
a atacar com seus raios
destruindo
a fortificação das trevas.
Mas também ajudou as macieiras
da Sibéria
a dar suas frutas debaixo da tormenta.

Ensinou a todos
a crescer, a crescer,
plantas e metais,
criaturas e rios
ensinou-lhes a crescer,
a dar frutos e fogo.
Ensinou-lhe a Paz
e assim deteve
com seu peito estendido
os lobos da guerra.

Diante do mar de Ilha Negra, na manhã,
icei a meia haste a bandeira do Chile.
Estava solitária a costa e uma névoa de prata
se mesclava à espuma solene do oceano,
Em metade do seu mastro, no campo de azul,
a estrela solitária de minha pátria
parecia uma lágrima entre o céu e a terra.
Passou um homem do povo, saudou compreendendo,
e tirou o chapéu.
Veio um rapaz e me apertou a mão.

Mais tarde o pescador de ouriços, o velho búzio
e poeta,
Gonzalito, acercou-se para acompanhar-me sob a bandeira.
“Era mais sábio que todos os homens juntos”, me disse
olhando o mar com seus velhos olhos, com velhos
olhos do povo.
E logo por longo instante não nos falamos nada.
Uma onda
estremeceu as pedras da margem.
“Porém Malenkov agora continuará sua obra”, prosseguiu
levantando-se o pobre pescador de jaqueta surrada.
Eu o fitei surpreendido pensando: como, como o sabe?
De onde, nesta costa solitária?
E compreendi que o mar lhe havia ensinado.

E ali velamos juntos, um poeta
um pescador e o mar
ao Capitão remoto que ao entrar na morte
deixou a todos os povos, como herança, a vida.

Pablo Neruda.

O Desfile

Diante de Mao Tsetung
o povo desfilava.
Não eram aqueles
Famintos e descalços
que desceram
as áridas gargantas,
que viveram em covas,
que comeram raízes,
e que quando baixaram
foram vento de aço,
vento de aço de Ienan e do Norte.
Hoje outros homens desfilavam,
decididos e alegres,
pisando fortemente a terra libertada
da pátria mais larga.

E assim passou a jovem orgulhosa, vestida
de azul operário, e junto a seu sorriso,
como uma cascata de neve,
quarenta mil bocas têxteis,
as fabricas de seda que marcham e sorriem,
os novos construtores de motores,
os velhos artesãos do marfim.
andando, andando
diante de Mao,
toda reunida a China, grão a grão,
de férreos cereais,
e a seda escarlate palpitando no céu
como as pétalas enfim conjugadas
da rosa terrestre,
e o grande tambor pesava
diante de Mao,
e um trovão escuro
dele subia saudando-o.
Era a voz antiga
da China, voz de coro,
voz do tempo enterrado,
a velha voz, os séculos
o saudavam.
E então como uma árvore
de flores repentinas
os meninos, aos milhares,
saudaram, e assim
os novos frutos e a velha terra,
o tempo, o trigo,
as bandeiras do homem por fim reunidas,
ali estavam.

Ali estavam, e Mao sorria
porque lá das alturas
sedentas do Norte
nasceu este rio humano
porque das cabeças de moças
cortadas pelos norte-americanos
(ou por Chiang Kai-Check, seu lacaio)
nas praças,
nasceu esta vida enorme.
Porque do ensinamento do Partido,
com pequenos livros mal impressos,
saiu esta lição para o mundo.
Sorria, pensando
nos ásperos anos passados,
a terra cheia de estrangeiros, fome
nas humildes choças,
o Yang Tsé mostrando em seu lombo
os répteis de aço
encouraçados
dos imperialistas invasores,
a pátria saqueada
e hoje, agora,
limpa a terra,
a vasta China límpida
e pisando o seu chão.

Respirando a pátria
desfilavam os homens
diante de Mao
e com sapatos novos
golpeavam a terra,
desfilando,
enquanto o vento nas bandeiras vermelhas
brincava e no alto
Mao Tsetung sorria.

Pablo Neruda

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

A INJUSTIÇA.


Quem descobre o quem sou descobrirá

quem és.

E o como, e o aonde.

De rompante toquei toda a injustiça.

A fome não era só fome,

mas a medida do homem.

O frio e o vento eram também medidas.

Mediu cem fomes e caiu o erguido.

Aos cem frios foi enterrado Pedro.

Um só vento durou a pobre casa.

E aprendi que o centímetro e o grama,

A colher e a língua mediam a cobiça

e que o homem assediado tombava de repente

num buraco, e já não mais sabia.

Não mais, e esse era o lugar,

o real regalo, o dom, a luz, a vida,

isso era padecer de frio e fome,

e não ter sapatos e tremer

diante do juiz, defronte a outro,

a outro ser com espada ou com tinteiro,

e assim a empurrões, cavando e cortando,

cosendo, fazendo pão, semeando trigo,

pregando cada prego que pedia madeira,

metendo-se na terra como um intestino

para arrancar, às cegas, o carvão crepitante

e, ainda mais, subindo rios e cordilheiras,

cavalgando cavalos, e movendo embarcações,

cozendo telhas, soprando vidros, lavando roupa,

de tal maneira que parecia

tudo isto o reino recém-levantado,

uva resplandecente do cacho,

quando o homem resolveu ser feliz,

e não era, não era assim. Foi descobrindo

a lei da desventura

o trono de ouro sanguinário,

a liberdade celestina,

a pátria sem abrigo

o coração ferido e fatigado,

e um rumor de mortos sem lágrimas,

secos, como pedras que caem.

E então deixei de ser menino

Porque compreendi que a meu povo

não lhe permitiram a vida

e lhe negaram a sepultura.


Pablo Neruda


# retirado do livro “Memorial de Ilha Negra”

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Elogio do Revolucionário

Quando aumenta a repressão, muitos desanimam.Mas a coragem dele aumenta.Organiza sua luta pelo salário, pelo pãoe pela conquista do poder.Interroga a propriedade:De onde vens?Pergunta a cada idéia:Serves a quem?Ali onde todos calam, ele falaE onde reina a opressão e se acusa o destino,ele cita os nomes.À mesa onde ele se sentase senta a insatisfação.À comida sabe mal e a sala se torna estreita.Aonde o vai a revoltae de onde o expulsampersiste a agitação.

Bertolt Brecht.

Os comunistas de Pablo Neruda

Os comunistas.

Os que colocam a alma na pedra,

no ferro, na dura disciplina,

ali vivemos só por amor

e já se sabe que nos dessangramos

quando a estrela foi tergiversada

pela lua sombria do eclipse.

Agora vereis que somos e pensamos.

Agora vereis que somos e seremos.

Somos a prata pura da terra,

o verdadeiro mineral do homem,

a fortificação da esperança;

um minuto de sombra não nos cega:

com nenhuma agonia morreremos.

Pablo Neruda