segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Carta a Stalingrado

Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.
Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.
Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.
Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!
A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 20 de setembro de 2011

ODE AO RIO DE JANEIRO

Rio de Janeiro, a água

é a tua bandeira,

agita as suas cores,

sopra e retine no vento,

cidade,

negra náiade,

de claridade sem fim,

de abrasadora sombra,

de pedra com espuma

é o teu tecido,

o cadenciado balanço

da tua rede marinha,

o azul movimento

dos teus pés areentos,

o aceso ramo

dos teus olhos.





Rio, Rio de Janeiro,

os gigantes

salpicam a tua estátua

com pontos de pimenta,

deixaram

na tua boca

dorsos do mar, barbatanas

perturbadoramente mornas,

promontórios

da fertilidade, tetas da água,

declives de granito,

lábios de ouro,

e entre as pedras quebradas

o sol marinho

iluminando

rutilantes espumas.





Ó Beleza,

ó cidadela

de pele fosforescente,

romã

de carne azul, ó deusa

tatuada em sucessivas

ondas de ágata negra,

da tua nua estátua

um aroma de jasmim molhado

se desprende, vem no suor, um ácido

pegajoso

de cafezais e de frutarias

e pouco a pouco sob o teu diadema,

entre a dupla maravilha

dos teus seios,

entre cúpula e cúpula

da tua natureza

aparece o dente da desgraça,

a cancerosa cauda

da miséria humana,

nos montes leprosos

o cacho inclemente

das vidas,

pirilampo terrível,

esmeralda

extraída

do sangue,

o teu povo estende-se

até aos confins da selva

num rumor abafado,

passos e surdas vozes,

migrações de esfomeados,

escuros pés com sangue,

o teu povo,

para lá dos rios,

na densa

amazônia,

esquecido,

no Norte

de espinhos,

esquecido,

com sede nos planaltos,

esquecido,

nos portos mordido

pela febre,

esquecido,

à porta

da casa de onde o expulsaram,

pedindo-te

apenas um olhar,

esquecido.

Noutras terras,

reinos, nações,

ilhas,

a cidade capital,

a coroada,

foi colméia

de trabalhos humanos,

amostra do azar

e do acerto,

fígado da pobre monarquia,

cozinha da pálida república.

Tu és a espelhante

montra

de uma sombria noite,

a garganta

coberta

de águas marinhas

e ouro

de um corpo

abandonado,

és a porta

delirante

de uma casa vazia,

és

o antigo pecado,

a salamandra

cruel,

intacta

na fogueira

das longas dores do teu povo,

és

Sodoma,

Sim,

Sodoma

deslumbrante,

com um fundo sombrio

de veludo verde,

rodeada

de crespa sombra, de águas

ilimitadas, dormes

nos braços

da desconhecida

Primavera

dum planeta selvagem.

Rio, Rio de Janeiro,

quantas coisas tenho

para te dizer. Nomes

que nunca esquecerei,

amores

que amadurecem o seu perfume,

encontros contigo, quando

do teu povo

uma onda

agregue ao teu diadema

a ternura,

quando

à tua bandeira de águas

subam as estrelas

do homem,

não do mar,

não do céu,

quando

no esplendor

da tua auréola

eu veja

o negro, o branco, o filho

da tua terra e do teu sangue,

elevados

até à dignidade da tua formosura,

iguais na luz resplandecente,

proprietários

humildes e orgulhosos

do espaço e da alegria,

então, Rio de Janeiro,

quando

alguma vez

para todos os teus filhos,

e não somente para alguns,

abrires o teu sorriso, espuma

de morena náiade,

então

eu serei o teu poeta,

chegarei com a minha lira

para cantar em teu aroma

e na tua cintura de platina

dormirei,

na tua areia

incomparável,

na frescura azul do leque

que tu abrirás no meu sono

como as asas de uma

gigantesca

borboleta marinha.





Pablo Neruda, 1956

OS POVOS

Enquanto isso, as tribos e os povos

rasgam a terra e dormem na mina,

pescam nos espinhos do inverno,

... cravam pregos em seus ataúdes,

edificam cidades que não habitam,

semeiam o pão que amanhã não terão,

disputam-se a fome e o perigo.



Pablo Neruda

FOI SANGRENTA

Foi sangrenta toda a terra do homem.




Tempo, edificações, rotas, chuva,



apagam as constelações do crime,



o certo é que um planeta tão pequeno



foi mil vezes coberto pelo sangue,



guerra ou vingança, armadilha ou batalha,



caíram homens, foram devorados,



depois o esquecimento foi limpando



cada metro quadrado: alguma vez



um vago monumento mentiroso,



às vezes uma clausula de bronze,



depois conversações, nascimentos,



municipalidades, e o esquecimento.



Que artes temos para o extermínio



e que ciência para extirpar lembranças!



Está florido o que foi sangrento.



Preparar-se, rapazes,



para outra vez matar, morrer de novo



e cobrir com flores o sangue.



Pablo Neruda

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Minha filha, minha heroína


Irene Creder Corrêa
Hoje nascia uma flor
cheia de beleza, alegria e fulgor.
Contra a injustiça e a opressão sempre lutou,
e na estrada da liberdade e do amor caminhou.
Aos pobres e oprimidos entregou seu coração
na luta contra os algozes do povo e da nação,
nesta guerra justa talvez tenha caído
nas garras ferozes do inimigo
Nesta batalha covardemente eles a venceram,
mas de uma coisa não se aperceberam:
Que outras flores nascerão
E o caminho dela seguirão,
e seu cheiro se espalhará,
e seu perfume todo o povo sentirá.
A vitória então chegará afinal
e você será heroína nacional.

*Poema em homenagem a Maria Célia Corrêa (Rosa), feito por sua mãe, no dia do aniversário da filha, 31/03/1979, no Rio de Janeiro. Maria Célia era guerrilheira no Araguaia e militante do Partido Comunista do Brasil. Ela esta entre os mortos e desaparecidos em combate na gloriosa Guerrilha do Araguaia.

Às Gerações Futuras

Eu vos contemplo
Da face oculta das coisas.
Meus desejos são inconclusos,
Minhas noites sem remorsos.
Eu vos contemplo,
Pelas grades insensíveis.
Meu sonho,
é uma grande rosa.
Minha poesia,
Luta .
Eu vos contemplo
Da virtual extremidade.
Minha vida (pela vossa).
Meu amor,
Vos liberta
Eu vos contemplo
As grades esmaecem.

Da própria contingência
Mas minha força
É imbatível
Porque estais
À espera.
Eu vos contemplo
Do fogo da batalha.
Meus soldados
Não se rendem.
O grande dia
Chegará
Eu vos contemplo
Gerações futuras,
Herdeiros da paz e do trabalho
Ante o meu contemplar.

Emmanoel Bezerra dos Santos

* Poema feito quando da primeira prisão de Emmanoel na base naval de Natal em 1969

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Para Ti as Espigas


REPÚBLICA, estendestes

teus amplos abraços por todo teu corpo

e fundaste a paz em seu destino!

Os perversos que vêm de mais além do mar

para saquear sua existência, foram bem recebidos,

e rumo a Formosa acorrentada voam

para alimentar o ninhos de escorpiões.

Logo desceram a Coréia. Sangue

e pranto e destruição, sua acostumada

tarefa: paredes vazias e mulheres mortas,

mas de repente um dia

chegou o baluarte de teus voluntários

para cumprir a sagrada fraternidade do homem.

De mar a mar, de terra a neve,

todos os homens te contemplam, China.

Que poderosa irmã jovem nos nasceu!

O homem nas Américas, inclinado em seu sulco,

Rodeado pelo metal de sua maquina ardente,

o pobre dos trópicos, o valente

mineiro da Bolívia, o largo operário

do profundo Brasil, o pastor

da Patagônia infinita,

te olham, China Popular, te saúdam

e comigo te enviam este beijo em tua fronte.

Não és para nós o que quiseram: a imagem

de uma mendiga cega junto ao templo,

mas uma forte e doce capitã do povo,

ainda com tuas vitoriosas armas em uma das mãos,

com um crescente ramo de espigas no peito

e sobre tua cabeça

a estrela de todos os povos!

Pablo Neruda

  • retirada do livro “As uvas e o vento” de 1954.